Por que Deus, o criador de tudo o que existe no Universo, ao dar existência ao ser humano, ao tirá-lo do Nada, destinou-o a defecar? Teria Deus, ao atribuir-nos essa irrevogável função de transformar em merda tudo o que comemos, revelado sua incapacidade de criar um ser perfeito? Ou sua vontade era essa, fazer-nos assim toscos? Ergo, a merda?
Não sei por que comecei a ter esse tipo de preocupação. Não era um homem religioso e sempre considerei Deus um mistério acima dos poderes humanos de compreensão, por isso ele pouco me interessava. O excremento, em geral, sempre me pareceu inútil e repugnante, a não ser, é claro, para os coprófilos e coprófagos, indivíduos raros dotados de extraordinárias anomalias obsessivas. Sim, sei que Freud afirmou que o excrementício está íntima e inseparavelmente ligado ao sexual, a posição da genitália — inter urinas et faeces — é um fator decisivo e imutável. Porém isso também não me interessava.
Mas o certo é que estava pensando em Deus e observando as minhas fezes no vaso sanitário. É engraçado, quando um assunto nos interessa, algo sobre ele a todo instante capta a nossa atenção, como o barulho do vaso sanitário do vizinho, cujo apartamento era contíguo ao meu, ou a notícia que encontrei, num canto de jornal, que normalmente me passaria despercebida, segundo a qual a Sotheby’s de Londres vendera em leilão uma coleção de dez latas com excrementos, obras de arte do artista conceitual italiano Piero Manzoni, morto em 1963. As peças haviam sido adquiridas por um colecionador privado, que dera o lance final de novecentos e quarenta mil dólares.
Não obstante minha reação inicial de repugnância, eu observava minhas fezes diariamente. Notei que o formato, a quantidade, a cor e o odor eram variáveis. Certa noite, tentei lembrar as várias formas que minhas fezes adquiriam depois de expelidas, mas não tive sucesso. Levantei, fui ao escritório, mas não consegui fazer desenhos precisos, a estrutura das fezes costuma ser fragmentária e multifacetada. Adquirem seu aspecto quando, devido a contrações rítmicas involuntárias dos músculos dos intestinos, o bolo alimentar passa do intestino delgado para o intestino grosso. Vários outros fatores também influem, como o tipo de alimento ingerido.
Não obstante minha reação inicial de repugnância, eu observava minhas fezes diariamente. Notei que o formato, a quantidade, a cor e o odor eram variáveis. Certa noite, tentei lembrar as várias formas que minhas fezes adquiriam depois de expelidas, mas não tive sucesso. Levantei, fui ao escritório, mas não consegui fazer desenhos precisos, a estrutura das fezes costuma ser fragmentária e multifacetada. Adquirem seu aspecto quando, devido a contrações rítmicas involuntárias dos músculos dos intestinos, o bolo alimentar passa do intestino delgado para o intestino grosso. Vários outros fatores também influem, como o tipo de alimento ingerido.
No dia seguinte comprei uma Polaroid. Com ela, fotografei diariamente as minhas fezes, usando um filme colorido. No fim de um mês, possuía um arquivo de sessenta e duas fotos — meus intestinos funcionam no mínimo duas vezes por dia —, que foram colocadas num álbum. Além das fotografias de meus bolos fecais, passei a acrescentar informações sobre coloração. As cores das fotos nunca são precisas. As entradas eram diárias.
Em pouco tempo sabia alguma coisa sobre as formas (repito, nunca eram exatamente as mesmas) que o excreto podia adquirir, mas aquilo não era suficiente para mim. Quis então colocar ao lado de cada porção a descrição do seu odor, que era também variável, mas não consegui. Kant estava certo ao classificar o olfato como um sentido secundário, devido a sua inefabilidade. Escrevi no Álbum, por exemplo, este texto referente ao odor de um bolo fecal espesso, marrom-escuro: odor opaco de verduras podres em geladeira fechada. O que era isso, odor opaco? A espessura do bolo me levara involuntariamente a sinonimizar: espesso- opaco? Que verduras? Brócolis? Eu parecia um enólogo descrevendo a fragrância de um vinho, mas na verdade fazia uma espécie de poesia nas minhas descrições olfativas. Sabemos que o odor das fezes é produzido por um composto orgânico de indol, igualmente encontrado no óleo de jasmim e no almíscar, e de escatol, que associa ainda mais o termo escatologia às fezes e à obscenidade. (Não confundir com outra palavra, homógrafa em nossa língua, mas de diferente etimologia grega, uma skatos, excremento, a outra éschatos, final, esta segunda escatologia possuindo uma acepção teológica que significa juízo final, morte, ressurreição, a doutrina do destino último do ser humano e do mundo.)
Faltava-me obter o peso das fezes e para tanto meus falazes sentidos seriam ainda menos competentes. Comprei uma balança de precisão e, após pesar durante um mês o produto dos dois movimentos diários dos meus intestinos, concluí que eliminava, num período de vinte e quatro horas, entre duzentos e oitenta e trezentos gramas de matéria fecal. Que coisa fantástica é o sistema digestivo, sua anatomia, os processos mecânicos e químicos da digestão, que começam na boca, passam pelo peristaltismo e sofrem os efeitos químicos das reações catalíticas e metabólicas. Todos sabem, mas não custa repetir, que fezes consistem em produtos alimentares não digeridos ou indigeríveis, mucos, celulose, sucos (biliares, pancreáticos e de outras glândulas digestivas), enzimas, leucócitos, células epiteliais, fragmentos celulares das paredes intestinais, sais minerais, água e um número grande de bactérias, além de outras substâncias. A maior presença é de bactérias. Os meus duzentos e oitenta gramas diários de fezes continham, em média, cem bilhões de bactérias de mais de setenta tipos diferentes. Mas o caráter físico e a composição química das fezes são influenciados, ainda que não exclusivamente, pela natureza dos alimentos que ingerimos. Uma dieta rica em celulose produz um excreto volumoso. O exame das fezes é muito importante nos diagnósticos definidores dos estados mórbidos, é um destacado instrumento da semiótica médica. Se somos o que comemos, como disse o filósofo, somos também o que defecamos. Deus fez a merda por alguma razão.
Esqueci-me de dizer que troquei o meu vaso sanitário, cuja bitola afunilada constringia as fezes, por um outro de fabricação estrangeira que teve de ser importado, uma peça com o fundo muito mais largo e mais raso, que não causava nenhuma interferência no formato do bolo fecal quando de sua queda após ser expelido, permitindo uma observação mais correta do seu feitio e disposição naturais. As fotos também eram mais fáceis de realizar e a retirada do bolo para ser pesado — a última etapa do processo — exigia menos trabalho.
Um dia, estava sentado na sala e notei sobre a mesa uma revista antiga, que devia estar num arquivo especial que tenho para as publicações com textos de minha autoria. Eu não me lembrava de tê-la retirado do arquivo, como fora aparecer em cima da mesa? Senti um certo mal-estar ao procurar o meu artigo. Era um ensaio que eu intitulara “Artes adivinhatórias”. Nele eu dizia, em suma, que astrologia, quiromancia & companhia não passavam de fraudes usadas por trapaceiros especializados em burlar a boa-fé de pessoas incautas. Para escrever o artigo, entrevistara vários desses indivíduos que ganhavam a vida prevendo o futuro e muitas vezes o passado das pessoas, através da observação de sinais variados. Além dos astros, havia os que baseavam sua presciência em cartas de baralho, linhas da mão, rugas da testa, cristais, conchas, caligrafia, água, fogo, fumaça, cinzas, vento, folhas de árvores. E cada uma dessas divinações possuía um nome específico, que a caracterizava. O primeiro que entrevistei, que praticava a geloscopia, dizia-se capaz de descobrir o caráter, os pensamentos e o futuro de uma pessoa pela maneira dela gargalhar, e me desafiou a dar uma risada. O último que entrevistei…
Ah, o último que entrevistei… Morava numa casa na periferia do Rio, uma região pobre da zona rural. O que me levou a enfrentar as dificuldades de encontrá-lo foi o fato de ser ele o único da minha lista que praticava a arte da aruspicação, e eu estava curioso para saber que tipo de embuste era aquele. A casa, de alvenaria, de apenas um piso, ficava no meio de um quintal sombreado de árvores. Entrei por um portão em ruínas e tive que bater várias vezes na porta. Fui recebido por um homem velho, muito magro, de voz grave e triste. A casa era pobremente mobiliada, não se via nela um único aparelho eletrodoméstico. As artimanhas desse sujeito, pensei, não o estão ajudando muito. Como se tivesse lido os meus pensamentos ele resmungou, você não quer saber a verdade, sinto a perfídia em seu coração. Vencendo a minha surpresa respondi, só quero saber a verdade, confesso que tenho prevenções, mas procuro ser isento nos meus julgamentos. Ele me pegou pelo braço com sua mão descarnada. Venha, disse.
Fomos para os fundos do quintal. Havia no chão de terra batida alguns cercados, um contendo cabritos, outro aves, creio que patos e galinhas; e mais um, com coelhos. O velho entrou no cercado de cabritos, pegou um dos animais e levou-o para um círculo de cimento num dos cantos do quintal. Anoitecia. O velho acendeu uma lâmpada de querosene. Um enorme facão apareceu em sua mão. Com alguns golpes, não sei de onde tirou a força para fazer aquilo, cortou a cabeça do cabrito. Em seguida — detesto relembrar esses acontecimentos —, usando sua afiada lâmina, abriu uma profunda e larga cavidade no corpo do cabrito, deixando suas entranhas à mostra. Pôs a lâmpada de querosene ao lado, sobre uma poça de sangue, e ficou um longo tempo observando as vísceras do animal. Finalmente, olhou para mim e disse: a verdade é esta, uma pessoa muito próxima a você está prestes a morrer, veja, está tudo escrito aqui. Venci minha repugnância e olhei aquelas entranhas sangrentas.
- Vejo um número oito.
- É esse o número - disse o velho.
Essa cena eu não incluí no meu artigo. E durante todos esses anos deixei-a esquecida num dos porões da minha mente. Mas hoje, ao ver a revista, rememorei, com a mesma dor que sentira na ocasião, o enterro da minha mãe. Era como se o cabrito estivesse estripado no meio da minha sala e eu contemplasse novamente o número oito nos intestinos do animal sacrificado. Minha mãe era a pessoa mais próxima de mim e morreu inesperadamente, oito dias depois da profecia funesta do velho arúspice.
A partir daquele momento em que desbloqueei da minha mente a lembrança do sinistro vaticínio da morte da minha mãe, comecei a procurar sinais proféticos nos desenhos que observava em minhas fezes. Toda leitura exige um vocabulário e evidentemente uma semiótica, sem isso o intérprete, por mais capaz e motivado que seja, não consegue trabalhar. Talvez o meu Álbum de fezes já fosse uma espécie de léxico, que eu criara inconscientemente para servir de base às interpretações que agora pretendia fazer.
Demorei algum tempo, para ser exato setecentos e cinquenta e cinco dias, mais de dois anos, para poder desenvolver meus poderes espirituais e livrar-me dos condicionamentos que me faziam perceber somente a realidade palpável e afinal interpretar aqueles sinais que as fezes me forneciam. Para lidar com símbolos e metáforas é preciso muita atenção e paciência. As fezes, posso afirmar, são um criptograma, e eu descobrira os seus códigos de decifração. Não vou detalhar aqui os métodos que utilizava, nem os aspectos semânticos e hermenêuticos do processo. Posso apenas dizer que o grau de especificidade da pergunta é fator ponderável. Consigo fazer perguntas prévias, antes de defecar, e interpretar depois os sinais buscando a minha resposta. Por outro lado, interrogações que podem ser elucidadas com uma simples negativa ou afirmativa facilitam o trabalho. Consegui prever, através desse tipo de indagação específica, o sucesso de um dos meus livros e o fracasso de outro. Mas às vezes eu nada indagava, e usava o método incondicional, que consiste em obter respostas sem fazer perguntas. Pude ler, nas minhas fezes, o presságio da morte de um governante; a previsão do desabamento de um prédio de apartamentos com inúmeras vítimas; o augúrio de uma guerra étnica. Mas não comentava o assunto com ninguém, pois certamente diriam que eu era um louco.
Há pouco mais de seis meses notei que mudara o ritmo das descargas da válvula do vaso sanitário do meu vizinho e logo descobri a razão. O apartamento fora vendido para uma jovem mulher, a quem encontrei, numa tarde ao chegar em casa, desanimada em frente à sua porta. Estava sem as chaves e não podia entrar. Eu me ofereci para entrar pela minha janela no seu apartamento, se a janela dela estivesse aberta, e abrir a porta. Isso exigiu de mim um pouco de contorcionismo, mas não foi difícil.
Ela me convidou para tomar um café. Seu nome era Anita. Passamos a nos visitar, gostávamos um do outro, morávamos sozinhos, nem eu nem ela tínhamos parentes no mundo, nossos interesses eram comuns e parecidas as opiniões que tínhamos sobre livros, filmes, peças de teatro. Ainda que ela fosse uma pessoa mística, jamais lhe falei dos meus poderes divinatórios, pois merda, entre nós, era um assunto tacitamente interdito, ela certamente não me deixaria ver as suas fezes; se um de nós fosse ao banheiro, tomava sempre o cuidado de pulverizar depois o local com um desodorante, colocado estrategicamente ao lado do lavatório.
Durante dez dias, antes de lhe declarar o meu amor, interpretei os sinais e decifrei as respostas que as minhas fezes davam à pergunta que fazia: se aquela seria a mulher da minha vida. A resposta era sempre afirmativa. Fui almoçar num restaurante com Anita. Como de hábito, ela demorou um longo tempo lendo o cardápio. Eu já disse que ela se considerava uma pessoa mística e que atribuía à comida um valor alegórico. Acreditava na existência de conhecimentos que só poderiam se tornar acessíveis por meio de percepções subjetivas. Como não tinha conhecimento dos dons que eu possuía, dizia que ao contrário dela eu apenas notava o que os meus sentidos me mostravam, e eles me davam apenas uma percepção grosseira das coisas. Afirmava que sua vitalidade, serenidade e alegria de viver resultavam da capacidade de harmonizar o mundo físico e espiritual através de experiências místicas que não me explicava quais eram pois eu não as entenderia. Quando lhe perguntei que papel desempenhavam nesse processo os exercícios aeróbicos, de alongamento e de musculação que ela fazia diariamente, Anita, depois de sorrir superiormente, afirmou que eu, como um monge da Idade Média, confundia misticismo com ascetismo. Na verdade, suas inclinações esotéricas aliadas à sua beleza — ela poderia ser usada como a ilustração da Princesa numa história de era-uma-vez — a tornavam ainda mais atraente.
Foi no restaurante que declarei o meu amor por Anita. Depois fomos para a minha casa.
Naquela noite fizemos amor pela primeira vez. Depois, durante nosso preguiçoso repouso, intercalado de palavras carinhosas, ela perguntou se eu tinha um dicionário de música, pois queria fazer uma consulta. Normalmente eu me levantaria da cama e iria apanhar o dicionário. Mas Anita, notando minha sonolência, causada pelo vinho que tomamos no jantar e pela saciação amorosa, disse que encontraria o dicionário, que eu permanecesse deitado.
Anita demorou a voltar para o quarto. Creio que até cochilei um pouco. Quando voltou, tinha o Álbum de fezes na mão.
O que é isto?, perguntou. Levantei-me da cama num pulo e tentei tirá-lo das suas mãos, explicando que não gostaria que lesse aquilo, pois ficaria chocada. Anita respondeu que já lera várias páginas e que achara engraçado. Pediu-me que explicasse em detalhes o que era e para que servia aquele dossiê.
Contei-lhe tudo e minha narrativa foi acompanhada atentamente por Anita, que amiúde consultava o Álbum que mantinha nas mãos. Para meu espanto, ela não só fez perguntas como discutiu comigo detalhes referentes às minhas interpretações. Falei-lhe da minha surpresa com a sua reação, mencionei o fato de ela ter detestado um dos meus livros, que tem uma história envolvendo fezes, e Anita respondeu que o motivo da sua aversão fora outro, o comportamento romântico machista do personagem masculino. Que aquilo tudo que lhe dizia a deixava feliz, pois indicava que eu era uma pessoa muito sensível. Aproveitei para dizer que gostaria de um dia ver as suas fezes, mas ela reagiu dizendo que nunca permitiria isso. Mas que não se incomodaria de ver as minhas.
Durante algum tempo observamos e analisamos as minhas fezes e discutimos a sua fenomenologia. Um dia, estávamos na casa de Anita e ela me chamou para ver suas fezes no vaso sanitário. Confesso que fiquei emocionado, senti o nosso amor fortalecido, a confiança entre os amantes tem esse efeito. Infelizmente o aparelho sanitário de Anita era do tal modelo alto e afunilado, e isso prejudicara a integridade das fezes que ela me mostrava, causando uma distorção exógena que tornara a massa ilegível. Expliquei isso para Anita, disse-lhe que para impedir que o problema voltasse a ocorrer ela teria que usar o meu vaso especial. Anita concordou e afirmou que ficara feliz ao contemplar as minhas fezes e que ao mostrar-me as suas se sentira mais livre, mais ligada a mim.
No dia seguinte, Anita defecou no meu banheiro. Suas fezes eram de uma extraordinária riqueza, várias peças em forma de bengalas ou báculos, simetricamente dispostas, lado a lado. Eu nunca vira fezes com desenho tão instigante. Então notei, horrorizado, que um dos bastonetes estava todo retorcido, formando o número oito, um oito igual ao que vira nas entranhas do cabrito sacrificado pelo arúspice, o augúrio da morte da minha mãe.
Anita, ao notar minha palidez, perguntou se eu estava me sentindo bem. Respondi que aquele desenho significava que alguém muito ligado a ela iria morrer. Anita duvidou, ou fingiu duvidar, do meu vaticínio. Contei-lhe a história da minha mãe, disse que havia sido de oito dias o prazo que transcorrera entre a revelação do arúspice e a morte dela.
Ninguém era tão próximo de Anita quanto eu. Marcado para morrer, eu tinha que me apressar, pois queria passar para ela os segredos da copromancia, palavra inexistente em todos os dicionários e que eu compusera com óbvios elementos gregos. Somente eu, criador solitário do seu código e da sua hermenêutica, possuía, no mundo, esse dom divinatório.
Amanhã será o oitavo dia. Estamos na cama, cansados. Acabei de perguntar a Anita se ela queria fazer amor. Ela respondeu que preferia ficar quieta ao meu lado, de mãos dadas, no escuro, ouvindo a minha respiração.
Faltava-me obter o peso das fezes e para tanto meus falazes sentidos seriam ainda menos competentes. Comprei uma balança de precisão e, após pesar durante um mês o produto dos dois movimentos diários dos meus intestinos, concluí que eliminava, num período de vinte e quatro horas, entre duzentos e oitenta e trezentos gramas de matéria fecal. Que coisa fantástica é o sistema digestivo, sua anatomia, os processos mecânicos e químicos da digestão, que começam na boca, passam pelo peristaltismo e sofrem os efeitos químicos das reações catalíticas e metabólicas. Todos sabem, mas não custa repetir, que fezes consistem em produtos alimentares não digeridos ou indigeríveis, mucos, celulose, sucos (biliares, pancreáticos e de outras glândulas digestivas), enzimas, leucócitos, células epiteliais, fragmentos celulares das paredes intestinais, sais minerais, água e um número grande de bactérias, além de outras substâncias. A maior presença é de bactérias. Os meus duzentos e oitenta gramas diários de fezes continham, em média, cem bilhões de bactérias de mais de setenta tipos diferentes. Mas o caráter físico e a composição química das fezes são influenciados, ainda que não exclusivamente, pela natureza dos alimentos que ingerimos. Uma dieta rica em celulose produz um excreto volumoso. O exame das fezes é muito importante nos diagnósticos definidores dos estados mórbidos, é um destacado instrumento da semiótica médica. Se somos o que comemos, como disse o filósofo, somos também o que defecamos. Deus fez a merda por alguma razão.
Esqueci-me de dizer que troquei o meu vaso sanitário, cuja bitola afunilada constringia as fezes, por um outro de fabricação estrangeira que teve de ser importado, uma peça com o fundo muito mais largo e mais raso, que não causava nenhuma interferência no formato do bolo fecal quando de sua queda após ser expelido, permitindo uma observação mais correta do seu feitio e disposição naturais. As fotos também eram mais fáceis de realizar e a retirada do bolo para ser pesado — a última etapa do processo — exigia menos trabalho.
Um dia, estava sentado na sala e notei sobre a mesa uma revista antiga, que devia estar num arquivo especial que tenho para as publicações com textos de minha autoria. Eu não me lembrava de tê-la retirado do arquivo, como fora aparecer em cima da mesa? Senti um certo mal-estar ao procurar o meu artigo. Era um ensaio que eu intitulara “Artes adivinhatórias”. Nele eu dizia, em suma, que astrologia, quiromancia & companhia não passavam de fraudes usadas por trapaceiros especializados em burlar a boa-fé de pessoas incautas. Para escrever o artigo, entrevistara vários desses indivíduos que ganhavam a vida prevendo o futuro e muitas vezes o passado das pessoas, através da observação de sinais variados. Além dos astros, havia os que baseavam sua presciência em cartas de baralho, linhas da mão, rugas da testa, cristais, conchas, caligrafia, água, fogo, fumaça, cinzas, vento, folhas de árvores. E cada uma dessas divinações possuía um nome específico, que a caracterizava. O primeiro que entrevistei, que praticava a geloscopia, dizia-se capaz de descobrir o caráter, os pensamentos e o futuro de uma pessoa pela maneira dela gargalhar, e me desafiou a dar uma risada. O último que entrevistei…
Ah, o último que entrevistei… Morava numa casa na periferia do Rio, uma região pobre da zona rural. O que me levou a enfrentar as dificuldades de encontrá-lo foi o fato de ser ele o único da minha lista que praticava a arte da aruspicação, e eu estava curioso para saber que tipo de embuste era aquele. A casa, de alvenaria, de apenas um piso, ficava no meio de um quintal sombreado de árvores. Entrei por um portão em ruínas e tive que bater várias vezes na porta. Fui recebido por um homem velho, muito magro, de voz grave e triste. A casa era pobremente mobiliada, não se via nela um único aparelho eletrodoméstico. As artimanhas desse sujeito, pensei, não o estão ajudando muito. Como se tivesse lido os meus pensamentos ele resmungou, você não quer saber a verdade, sinto a perfídia em seu coração. Vencendo a minha surpresa respondi, só quero saber a verdade, confesso que tenho prevenções, mas procuro ser isento nos meus julgamentos. Ele me pegou pelo braço com sua mão descarnada. Venha, disse.
Fomos para os fundos do quintal. Havia no chão de terra batida alguns cercados, um contendo cabritos, outro aves, creio que patos e galinhas; e mais um, com coelhos. O velho entrou no cercado de cabritos, pegou um dos animais e levou-o para um círculo de cimento num dos cantos do quintal. Anoitecia. O velho acendeu uma lâmpada de querosene. Um enorme facão apareceu em sua mão. Com alguns golpes, não sei de onde tirou a força para fazer aquilo, cortou a cabeça do cabrito. Em seguida — detesto relembrar esses acontecimentos —, usando sua afiada lâmina, abriu uma profunda e larga cavidade no corpo do cabrito, deixando suas entranhas à mostra. Pôs a lâmpada de querosene ao lado, sobre uma poça de sangue, e ficou um longo tempo observando as vísceras do animal. Finalmente, olhou para mim e disse: a verdade é esta, uma pessoa muito próxima a você está prestes a morrer, veja, está tudo escrito aqui. Venci minha repugnância e olhei aquelas entranhas sangrentas.
- Vejo um número oito.
- É esse o número - disse o velho.
Essa cena eu não incluí no meu artigo. E durante todos esses anos deixei-a esquecida num dos porões da minha mente. Mas hoje, ao ver a revista, rememorei, com a mesma dor que sentira na ocasião, o enterro da minha mãe. Era como se o cabrito estivesse estripado no meio da minha sala e eu contemplasse novamente o número oito nos intestinos do animal sacrificado. Minha mãe era a pessoa mais próxima de mim e morreu inesperadamente, oito dias depois da profecia funesta do velho arúspice.
A partir daquele momento em que desbloqueei da minha mente a lembrança do sinistro vaticínio da morte da minha mãe, comecei a procurar sinais proféticos nos desenhos que observava em minhas fezes. Toda leitura exige um vocabulário e evidentemente uma semiótica, sem isso o intérprete, por mais capaz e motivado que seja, não consegue trabalhar. Talvez o meu Álbum de fezes já fosse uma espécie de léxico, que eu criara inconscientemente para servir de base às interpretações que agora pretendia fazer.
Demorei algum tempo, para ser exato setecentos e cinquenta e cinco dias, mais de dois anos, para poder desenvolver meus poderes espirituais e livrar-me dos condicionamentos que me faziam perceber somente a realidade palpável e afinal interpretar aqueles sinais que as fezes me forneciam. Para lidar com símbolos e metáforas é preciso muita atenção e paciência. As fezes, posso afirmar, são um criptograma, e eu descobrira os seus códigos de decifração. Não vou detalhar aqui os métodos que utilizava, nem os aspectos semânticos e hermenêuticos do processo. Posso apenas dizer que o grau de especificidade da pergunta é fator ponderável. Consigo fazer perguntas prévias, antes de defecar, e interpretar depois os sinais buscando a minha resposta. Por outro lado, interrogações que podem ser elucidadas com uma simples negativa ou afirmativa facilitam o trabalho. Consegui prever, através desse tipo de indagação específica, o sucesso de um dos meus livros e o fracasso de outro. Mas às vezes eu nada indagava, e usava o método incondicional, que consiste em obter respostas sem fazer perguntas. Pude ler, nas minhas fezes, o presságio da morte de um governante; a previsão do desabamento de um prédio de apartamentos com inúmeras vítimas; o augúrio de uma guerra étnica. Mas não comentava o assunto com ninguém, pois certamente diriam que eu era um louco.
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Há pouco mais de seis meses notei que mudara o ritmo das descargas da válvula do vaso sanitário do meu vizinho e logo descobri a razão. O apartamento fora vendido para uma jovem mulher, a quem encontrei, numa tarde ao chegar em casa, desanimada em frente à sua porta. Estava sem as chaves e não podia entrar. Eu me ofereci para entrar pela minha janela no seu apartamento, se a janela dela estivesse aberta, e abrir a porta. Isso exigiu de mim um pouco de contorcionismo, mas não foi difícil.
Ela me convidou para tomar um café. Seu nome era Anita. Passamos a nos visitar, gostávamos um do outro, morávamos sozinhos, nem eu nem ela tínhamos parentes no mundo, nossos interesses eram comuns e parecidas as opiniões que tínhamos sobre livros, filmes, peças de teatro. Ainda que ela fosse uma pessoa mística, jamais lhe falei dos meus poderes divinatórios, pois merda, entre nós, era um assunto tacitamente interdito, ela certamente não me deixaria ver as suas fezes; se um de nós fosse ao banheiro, tomava sempre o cuidado de pulverizar depois o local com um desodorante, colocado estrategicamente ao lado do lavatório.
Durante dez dias, antes de lhe declarar o meu amor, interpretei os sinais e decifrei as respostas que as minhas fezes davam à pergunta que fazia: se aquela seria a mulher da minha vida. A resposta era sempre afirmativa. Fui almoçar num restaurante com Anita. Como de hábito, ela demorou um longo tempo lendo o cardápio. Eu já disse que ela se considerava uma pessoa mística e que atribuía à comida um valor alegórico. Acreditava na existência de conhecimentos que só poderiam se tornar acessíveis por meio de percepções subjetivas. Como não tinha conhecimento dos dons que eu possuía, dizia que ao contrário dela eu apenas notava o que os meus sentidos me mostravam, e eles me davam apenas uma percepção grosseira das coisas. Afirmava que sua vitalidade, serenidade e alegria de viver resultavam da capacidade de harmonizar o mundo físico e espiritual através de experiências místicas que não me explicava quais eram pois eu não as entenderia. Quando lhe perguntei que papel desempenhavam nesse processo os exercícios aeróbicos, de alongamento e de musculação que ela fazia diariamente, Anita, depois de sorrir superiormente, afirmou que eu, como um monge da Idade Média, confundia misticismo com ascetismo. Na verdade, suas inclinações esotéricas aliadas à sua beleza — ela poderia ser usada como a ilustração da Princesa numa história de era-uma-vez — a tornavam ainda mais atraente.
Foi no restaurante que declarei o meu amor por Anita. Depois fomos para a minha casa.
Naquela noite fizemos amor pela primeira vez. Depois, durante nosso preguiçoso repouso, intercalado de palavras carinhosas, ela perguntou se eu tinha um dicionário de música, pois queria fazer uma consulta. Normalmente eu me levantaria da cama e iria apanhar o dicionário. Mas Anita, notando minha sonolência, causada pelo vinho que tomamos no jantar e pela saciação amorosa, disse que encontraria o dicionário, que eu permanecesse deitado.
Anita demorou a voltar para o quarto. Creio que até cochilei um pouco. Quando voltou, tinha o Álbum de fezes na mão.
O que é isto?, perguntou. Levantei-me da cama num pulo e tentei tirá-lo das suas mãos, explicando que não gostaria que lesse aquilo, pois ficaria chocada. Anita respondeu que já lera várias páginas e que achara engraçado. Pediu-me que explicasse em detalhes o que era e para que servia aquele dossiê.
Contei-lhe tudo e minha narrativa foi acompanhada atentamente por Anita, que amiúde consultava o Álbum que mantinha nas mãos. Para meu espanto, ela não só fez perguntas como discutiu comigo detalhes referentes às minhas interpretações. Falei-lhe da minha surpresa com a sua reação, mencionei o fato de ela ter detestado um dos meus livros, que tem uma história envolvendo fezes, e Anita respondeu que o motivo da sua aversão fora outro, o comportamento romântico machista do personagem masculino. Que aquilo tudo que lhe dizia a deixava feliz, pois indicava que eu era uma pessoa muito sensível. Aproveitei para dizer que gostaria de um dia ver as suas fezes, mas ela reagiu dizendo que nunca permitiria isso. Mas que não se incomodaria de ver as minhas.
Durante algum tempo observamos e analisamos as minhas fezes e discutimos a sua fenomenologia. Um dia, estávamos na casa de Anita e ela me chamou para ver suas fezes no vaso sanitário. Confesso que fiquei emocionado, senti o nosso amor fortalecido, a confiança entre os amantes tem esse efeito. Infelizmente o aparelho sanitário de Anita era do tal modelo alto e afunilado, e isso prejudicara a integridade das fezes que ela me mostrava, causando uma distorção exógena que tornara a massa ilegível. Expliquei isso para Anita, disse-lhe que para impedir que o problema voltasse a ocorrer ela teria que usar o meu vaso especial. Anita concordou e afirmou que ficara feliz ao contemplar as minhas fezes e que ao mostrar-me as suas se sentira mais livre, mais ligada a mim.
No dia seguinte, Anita defecou no meu banheiro. Suas fezes eram de uma extraordinária riqueza, várias peças em forma de bengalas ou báculos, simetricamente dispostas, lado a lado. Eu nunca vira fezes com desenho tão instigante. Então notei, horrorizado, que um dos bastonetes estava todo retorcido, formando o número oito, um oito igual ao que vira nas entranhas do cabrito sacrificado pelo arúspice, o augúrio da morte da minha mãe.
Anita, ao notar minha palidez, perguntou se eu estava me sentindo bem. Respondi que aquele desenho significava que alguém muito ligado a ela iria morrer. Anita duvidou, ou fingiu duvidar, do meu vaticínio. Contei-lhe a história da minha mãe, disse que havia sido de oito dias o prazo que transcorrera entre a revelação do arúspice e a morte dela.
Ninguém era tão próximo de Anita quanto eu. Marcado para morrer, eu tinha que me apressar, pois queria passar para ela os segredos da copromancia, palavra inexistente em todos os dicionários e que eu compusera com óbvios elementos gregos. Somente eu, criador solitário do seu código e da sua hermenêutica, possuía, no mundo, esse dom divinatório.
Amanhã será o oitavo dia. Estamos na cama, cansados. Acabei de perguntar a Anita se ela queria fazer amor. Ela respondeu que preferia ficar quieta ao meu lado, de mãos dadas, no escuro, ouvindo a minha respiração.
Rubem Fonseca